Sigilo Arbitragem
O sigilo é um dos principais benefícios da arbitragem. Porém, pode ser também um de seus principais malefícios, pois impede a formação de jurisprudência e dificulta a busca por segurança jurídica.
A resolução de conflitos por meio da arbitragem é certamente uma realidade cada vez mais presente no dia a dia da praxe forense.
Embora a lei de arbitragem brasileira date dos idos de 1996, durante muitos anos este procedimento restou, na prática, restrito à solução de conflitos envolvendo empresas multinacionais, em ações que discutiam objetos de milhares ou milhões de dólares.
Talvez por isso, seja ainda comum e difundida a ideia de que a arbitragem seja um procedimento extremamente caro e inviável para as disputas forenses cotidianas.
Mas se o custo elevado é um dos elementos fortemente aderido ao conceito de arbitragem, também de igual forma é apontado o sigilo, como se a arbitragem fosse verdadeira antítese ao bem firmado conceito da publicidade que rege os processos tramitando sob o manto do Poder Judiciário.
Tanto é assim, que a doutrina ressoa de forma quase unanime que o sigilo é uma das mais importantes qualidades do procedimento arbitral, chegando a comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional a afirmar que “it is widely viewed that confidentiality is one of the advantageous and helpful features of arbitration”.
Em seu livro “Teoria Geral da Arbitragem, José Antonio Fichtner traz uma interessante pesquisa realizada pela Queen Mary – University of London e a PricewaterhouseCoopers, que, a partir de pesquisa com praticantes de arbitragem, apresenta a seguinte conclusão:
“the top reasons for choosing international arbitration are flexibility of procedure, the enforceability of awards, the privacy afforded by the process and the ability of parties to select the arbitrators”
Figueira Dias também se alinha àqueles que reconhecem no sigilo um dos mais importantes elementos da arbitragem, anotando que:
“(…) um dos pontos positivos da jurisdição privada reside na circunstância de tratar-se de juízo sigiloso, na exata medida em que os atos processuais e julgamento do litígio processam-se, via de regra, em “segredo de justiça”, o que confere às partes maior liberdade, transparência e segurança para a exposição dos fatos, do direito e, em especial, para a produção de provas sem qualquer risco (direto ou reflexo) em face de terceiros que não integram a lide ou do poder público, notadamente o Fisco, tratando-se, aliás, de elemento facilitador da autocomposição.
É interessante, por outro lado, observar que o sigilo não é previsto expressamente pela Lei da Arbitragem como um requisito ou elemento intrínseco da arbitragem. Nesse sentido, ensina Fabiane Assumpção:
Numa análise de nossa Lei de Arbitragem (LA) fica constatado que ela não estabelece, expressamente, que a arbitragem deva ser confidencial. Pela simples letra da lei, as partes, os árbitros (exceto quanto à discrição que os árbitros devem empregar, como prevê o art. 13, § 6º, da LA) e os terceiros que auxiliam a arbitragem pelas entidades institucionais ou, ainda, aqueles que prestam esclarecimentos e depoimentos não estariam, em princípio, legalmente obrigados a manter confidencialidade ou impedidos de fornecer quaisquer informações sobre a arbitragem. Entretanto, a confidencialidade na arbitragem parece existir entre nós como um conceito entranhado e inconsciente.
É certo que, em se tratando de arbitragens envolvendo objetos e negócios de elevado valor, costuma ser do interesse dos litigantes que o sigilo seja absoluto, sobretudo porque é bastante comum ser necessário apresentar diversas informações estratégicas da própria empresa para resolução do conflito, expondo tais informações não apenas para concorrentes, mas também para o fisco, ministério público, clientes etc.
A exposição incontida de tais informações, como ocorre em um processo judicial pode, em muitos casos, ser até mais gravosa do que o próprio processo, o que explica, em muito, a tamanha valorização que se outorga ao benefício do sigilo nas arbitragens.
Outro elemento, com frequência apontado como um benefício da arbitragem, é a inexistência, em regra, de possibilidade de apresentação de recursos contra a sentença arbitral, determinação que decorre expressamente do artigo 18 da Lei 9.307/96 que assim dispõe:
Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário.
Sobre este ponto, importante lembrar que o árbitro exerce função em muito assemelhada à de um juiz de direito, possuindo amplos poderes para julgar o caso de acordo com sua convicção, desde que fundamentada. Sua decisão não está sujeita a qualquer recurso ou mecanismo de uniformização. Sobre o tema, ensina Humberto Dalla Pinho que:
“Inicialmente, importante ter em mente que o legislador quis transferir ao árbitro praticamente todos os poderes que o juiz de direito detém. O art. 18 da Lei n. 9.307/96 afirma textualmente que o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que ele proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário.”
A inexistência de recurso representa um importante ganho em termos de tempo e custo do procedimento e é com frequência também apontada como uma das vantagens da arbitragem.
Mas se o sigilo e a ausência de recursos parecem ser soluções perfeitas para proteger informações sensíveis dos litigantes e entregar-lhes prestação jurisdicional célere e objetiva, é certo que existe ínsito em tais benefícios um grave efeito colateral, qual seja a dificuldade de formação de jurisprudência unificada e até mesmo de formação de jurisprudência dentro de uma mesma câmara arbitral.
Cuidamos aqui de uma potencial infringência ao postulado da segurança jurídica que, segundo José Afonso da Silva consiste no:
“conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”
Ora, se a segurança jurídica representa, dentre outros elementos, a possibilidade de conhecimento antecipado das consequências de um determinado ato, é claro que, ao se transportar a segurança jurídica para as relações negociais, legais, contratuais e seus mais diversos feixes, importa aos agentes envolvidos, no final das contas, saber qualquer será, com o maior grau de acerto possível, a decisão final de um juiz ou um árbitro sobre a correção ou não daquela conduta.
A previsibilidade quanto ao desfecho de uma disputa jurídica não apenas possibilita às partes reconhecer em uma determinada jurisdição o predicado da segurança jurídica, mas também lhes possibilita precificar o risco, e, portanto, o custo/benefício de suas operações, e até mesmo avaliar a viabilidade ou não de determinado investimento ou negócio.
A correta precificação do risco, baseada na segurança jurídica, também funciona como parâmetro para avaliar critérios básicos para um eventual acordo. Ora, como avaliar elementos como o BATNA (Best Alternative to a Negotiated Agreement) se os litigantes sequer puderem estabelecer, estatisticamente, qual a chance de êxito na demanda?
Não é por outra razão que, no âmbito do Poder Judiciário, dá-se extrema relevância para as decisões reiteradas de um tribunal, em especial dos tribunais superiores, cuja função é, dentre outras, a de uniformizar o entendimento jurisprudencial dos tribunais inferiores.
Diversos mecanismos de consolidação jurisprudencial como as súmulas vinculantes e os procedimentos de julgamento de recursos repetitivos tem, ao longo do tempo, mostrado a preocupação do legislador e dos operadores do direito com a consolidação dos entendimentos jurídicos sobre determinada matéria, possibilitando deste modo o conhecimento prévio sobre o desfecho esperado de um caso e, por consequência, trazendo segurança jurídica e estabilidade para situações futuras semelhantes.
Os julgamentos perante o Poder Judiciário não apenas são, como regra públicos, como também estão submetidos a regras de uniformização de entendimentos através de recursos aos tribunais estaduais, ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal e, mesmo dentro dos tribunais, através de mecanismos de uniformização como os embargos de divergência.
A publicidade das decisões e a possibilidade de recurso a órgãos superiores conferem a jurisprudência estatal relevante grau de previsibilidade, absolutamente ausente nos julgamentos arbitrais.
A previsibilidade, que como vimos está fortemente ligada a segurança jurídica, é obstada pela própria natureza da arbitragem e em especial pelo seu sigilo e pela ausência de recursos. Ora, como formar uma jurisprudência consolidada se as decisões arbitrais não podem, como regra, ser objeto de publicidade?
Frequentemente tem-se apontado como solução para tal problema a divulgação de ementas de jurisprudência pelas câmaras arbitrais, com anonimização dos players envolvidos, mas com divulgação da tese firmada no caso.
Certamente essa é uma mitigação do problema e a tendência, nos parece, é de que de fato as câmaras adotem tal procedimento. Mas nem de longe esta solução resolve o problema por completo.
Isto porque, como regra, o árbitro não está vinculado a julgamentos anteriores e seus julgamentos podem ser livremente fundamentados, inclusive em sentido contrário a ementas da própria câmara.
Poder-se-ia alegar que tal liberdade também assiste ao juiz de direito, porém, a situação não pode ser igualada. Isto porque, embora o juiz monocrático também tenha liberdade para julgar de acordo com sua convicção, estão suas decisões sujeitas a revisão pelo Tribunal de Justiça Estadual e pelos Tribunais Superiores, o que não ocorre com as decisões arbitrais que, como vimos, são irrecorríveis.
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Ademais, existe extrema descentralização dos julgamentos, pois existem inúmeras câmaras arbitrais, absolutamente independentes entre si, sem que exista qualquer órgão a elas superior para consolidar ou uniformizar a jurisprudência formada individualmente em cada uma delas.
Imagine-se um mundo ideal, no qual 100% das disputas jurídicas sejam resolvidas na via arbitral, de modo sigiloso. Inexistiria nessa hipótese, formação de entendimentos jurídicos consolidados. A jurisprudência simplesmente deixaria de existir e se tornaria extremamente difícil prever o resultado de uma lide.
A previsibilidade jurídica existiria, quando muito, na escolha do árbitro julgador, com base em entendimentos jurídicos por ele expressados em livros ou em outros casos dos quais ele tenha participado.
Mas isso é muito pouco para um mecanismo que pretende ser visto como uma grande solução à lentidão do Poder Judiciário. A arbitragem como é hoje, com o sigilo e a não-recorribilidade elevados a elementos sacrossantos de sua essência, tende a ser um mecanismo de nicho, voltado a grandes disputas internacionais no campo comercial e societário.
O sigilo e a impossibilidade de apresentação de recursos resultam em verdadeiro paradoxo. De um lado, atraem aqueles que buscam privacidade para suas informações e rapidez na solução dos conflitos. De outro, causam verdadeira insegurança jurídica ao impedir a formação e conhecimento de uma jurisprudência consolidada sobre os temas postos em discussão.
Em um universo pequeno e nichado de disputas, a ausência de jurisprudência é até aceitável, até porque diversas decisões arbitrais acabam se escorando em jurisprudência e súmulas estatais. Mas com o possível crescimento do uso da arbitragem, a ausência destes paradigmas tende a se tornar um problema cada vez mais grave, resultando em flagrante insegurança jurídica.
A publicação de ementas de jurisprudência pelas câmaras arbitrais pode sim mitigar este problema, porém, em nosso sentir, deveriam ser criados mecanismos de uniformização de jurisprudência, ao menos dentro das câmaras arbitrais, viabilizando-se recurso contra a sentença arbitral, para a própria câmara, quando violada sua jurisprudência consolidada.
Desta forma, seria ao menos possível às partes ter alguma previsibilidade jurídica com base na escolha de determinada câmara arbitral, que apresente reiteradamente um ou outro entendimento. Sacrificar-se-ia uma parte do sigilo ao se publicar ementas de julgamento, ainda que anonimizadas e sacrificar-se-ia uma parte da celeridade ao se permitir recurso de uniformização à câmara arbitral. Mas ganhar-se-ia muito em previsibilidade e segurança jurídica, elementos fundamentais a qualquer sistema que se pretenda ser levado a sério.
Paulo André M. Pedrosa
Autor da coluna “Direito & Negócios”, advogado do Battaglia & Pedrosa Advogados. Graduado em Direito pelo Mackenzie. Pós-graduado em Processo Civil pela PUC-SP. LL.M em Direito Societário pelo INSPER. Mestrando em Direito dos Negócios pela FGV-SP.
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