Na aplicação prática do direito, os operadores se deparam com inúmeras situações nas quais o ente público força a utilização de premissas desfavoráveis ao contribuinte, ainda que equivocadas sob o prisma legislativo, para favorecer os cofres da administração pública. O caso mais conhecido entre os operadores do direito, dessa modalidade de coerção pelo ente público, é a majoração da incidência tributária através do Decreto Estadual nº 55.002/09, que visou regulamentar a Lei nº 10.705/00, que dispõe sobre a instituição do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, no Estado de São Paulo.
Em suma, o decreto mencionado determinada que, nos casos de incidência do ITCMD, o valor base para cálculo do tributo seria o valor venal de referência, fornecido pela prefeitura, que teoricamente representa o valor que a Municipalidade entende como sendo o “valor de mercado” do imóvel, todavia, este Decreto é inconstitucional e ilegal, uma vez que vai de encontro com o princípio da reserva legal, previsto no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, e nos arts. 9º, inciso I, 97, incisos II, IV e §1º do Código Tributário Nacional, conforme já reconhecido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP 1020142-48.2020.8.26.0053, Relator: Leonel Costa, 8ª Câmara de Direito Público; TJSP 1016773-46.2020.8.26.0053, Relator: Danilo Panizza, 1ª Câmara de Direito Público).
Pacificação do entendimento
Nesse sentido, verifica-se que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pacificou entendimento de que é ilegal o Ente Público obrigar o contribuinte a recolher o tributo calculado sobre o valor venal de referência, todavia, em sede de reexame da matéria pelo órgão colegiado do tribunal, tem-se verificado que alguns julgadores votam pela manutenção da segurança conferida, no entanto, fazem uma ressalva que vêm prejudicado alguns contribuintes que impetraram o remédio constitucional – Mandado de Segurança – para utilização do valor venal de IPTU (valor este menor do que o de Referência).
Essa “ressalva” feita pelos julgadores refere-se à possibilidade do fisco instaurar procedimento administrativo, no caso de discordar do valor declarado ou atribuído a bem objeto do ITCMD, nos termos da regra do artigo 11 da Lei Estadual nº 10705/00, intitulado como “lançamento por arbitramento”. Através desse procedimento administrativo, o fisco faz uma avaliação do imóvel e intima o contribuinte a impugnar o cálculo apresentado. Em suma, o fisco distribui um procedimento administrativo majorando o valor avaliado do seu imóvel, onerando mais ainda o contribuinte que, caso não concorde com o valor indicado pela municipalidade, é obrigado a contratar um profissional para avaliar seu imóvel e ter conteúdo para impugnar a “avaliação” feita pelo fisco.
Mandado de Segurança para proteger o contribuinte
Verifica-se que, toda a função exercida pelo Mandado de Segurança para proteger o contribuinte de ato da autoridade coatora, nesse caso, a Prefeitura, está sendo burlada pela “ressalva” feita pelos julgadores e que possibilita ao fisco prejudicar e onerar mais ainda o contribuinte. Ocorre que, as turmas julgadores têm deixado de verificar os requisitos para instauração deste procedimento administrativo, nos termos do art. 148 do CTN, de forma a possibilitar uma utilização extensiva e equivocada da modalidade de lançamento prevista artigo 11 da Lei Estadual nº 10705/00 (arbitramento).
Conforme já versado, a modalidade de lançamento está prevista no art. 148 do Código Tributário Nacional e da análise da redação do artigo, pode-se concluir que o arbitramento é uma técnica de lançamento utilizada para avaliar a base de cálculo do tributo quando inexistir documentação ou declaração do contribuinte que possibilite a averiguação do valor base.
Destaca-se que, o lançamento do ITCMD ocorre, via de regra, na modalidade declaração, dependendo o Fisco de informações prestadas pelo sujeito passivo, atinentes ao fato gerador, que sejam indispensáveis à constituição do crédito tributário.
Lançamento por arbitramento – remédio amargo
Ocorre que o lançamento por arbitramento é uma técnica extrema, a ser aplicada quando não há outra alternativa e que não deve ser utilizada à larga. Deve-se evitá-la sempre que possível, aproveitando-se os dados fornecidos, mesmo que incompletos ou percebidas algumas falhas que possam ser sanáveis.
Sacha Calmon, em seu parecer apresentado na Revista Dialética de Direito Tributário, edição de março de 2015 , descreve os pressupostos e requisitos que ensejam o arbitramento nos seguintes termos:
– Ausência de escrita ou de documentação que lastreie (a isso estando equiparada a recusa em informar ou entregar documentação por parte do contribuinte ou de terceiro obrigado); e
– Prévia desonestidade do sujeito passivo nas informações prestadas ou na elaboração da escrita, abalando-se a crença nos dados por ele oferecidos a par de documentação imprestável eivada de falsidade;
A ausência total daqueles documentos que seriam considerados fundamentais, ou fundada desconfiança contra os impetrantes, são motivo/causa de deferimento para lançamento da tributação por arbitramento.
Não devemos perder de vista que, o lançamento por arbitramento enseja avaliação e direito de contraditório, de modo que prolongará o curso do procedimento administrativo, imputando maiores custos ao processo, sem a menor causa ou fundamentação.
Conforme leciona Aliomar Baleeiro, em sua obra “Direito Tributário Brasileiro: CTN Comentado, da editora Forense; 14ª edição (17 maio 2018), a invocação do art. 148 do CTN somente é cabível quando o sujeito passivo for omisso, reticente ou mendaz em relação à base de cálculo do tributo, quadro esse não configurado no caso em tela.
No mesmo sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acompanha o entendimento pela necessidade de preenchimento dos requisitos do art. 148 do CTN para deferimento do lançamento do tributo na modalidade de arbitramento. (TJSP – 1023284-89.2022.8.26.0053; Relator Kleber Leyser de Aquino; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público).
Em síntese, verifica-se que a aplicação desarrazoada do procedimento administrativo para lançamento por arbitramento vem como medida contra efetiva à celeridade processual, além de onerar injustificadamente o contribuinte. Desse modo, caso o tribunal, em sede de reexame da matéria, ou até mesmo o juiz de primeiro grau, fixar como previsão a possibilidade de o fisco instruir procedimento administrativo na regra do artigo 11 da Lei Estadual nº 10705/00, é necessário recorrer da decisão destacando os requisitos para utilização de tal modalidade de arbitramento.
Murilo Zerrenner
Advogado do Battaglia & Pedrosa Advogados, graduado em Direito e pós-graduando em Processo Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro na comissão de compliance da OAB Santo Amaro.
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