Quando o Risco é Inerente: Estratégias Jurídicas para Evitar Responsabilizações por Iatrogenia

iatrogenia

Introdução


A medicina é uma ciência complexa, pautada na busca pela melhoria da qualidade de vida e saúde dos pacientes. Entretanto, ela também carrega consigo riscos inerentes, muitos dos quais não podem ser completamente eliminados, mesmo com a aplicação das melhores práticas e técnicas disponíveis.

Um dos desafios que emergem desse cenário é a iatrogenia, que se refere a danos ou complicações provenientes de intervenções médicas realizadas corretamente, mas que resultam ainda assim em efeitos indesejáveis.

Com o aumento do número de ações judiciais envolvendo profissionais da saúde, torna-se imprescindível compreender os limites da responsabilidade médica em casos de iatrogenia, distinguindo-a claramente do erro médico. Além disso, é fundamental que os médicos adotem estratégias preventivas que garantam uma atuação segura nos limites legais e éticos.

Este artigo aborda a natureza da iatrogenia, sua diferença em relação ao erro médico e oferece uma análise aprofundada sobre como profissionais da saúde podem mitigar riscos e evitar responsabilizações injustas.

Conceito de Iatrogenia


Etimologicamente, a palavra iatrogenia tem origem no grego iatros (médico) e genia (origem), referindo-se à “origem médica”. Na prática, significa qualquer dano ao paciente decorrente de uma intervenção médica, mesmo quando conduzida de forma técnica e ética.

Esses danos podem incluir complicações cirúrgicas, efeitos colaterais de medicamentos e reações adversas inesperadas, como hemorragias ou infecções em procedimentos invasivos.

O conceito de iatrogenia pode ser dividido em dois enfoques principais:

  • Iatrogenia Lato Sensu: abrange qualquer dano causado ao paciente pela intervenção médica, independentemente da culpa do profissional.

  • Iatrogenia Stricto Sensu: refere-se especificamente a danos inevitáveis, decorrentes de complicações reconhecidas na prática médica, mesmo quando todas as medidas preventivas foram adotadas.

Um exemplo clássico é a hemorragia durante uma cirurgia abdominal. Mesmo com todos os cuidados e técnicas adequadas, a natureza do procedimento pode levar a uma ruptura vascular, caracterizando um dano iatrogênico inevitável.

Iatrogenia vs. Erro Médico: Uma Distinção Fundamental

A distinção entre iatrogenia e erro médico é essencial tanto para o entendimento técnico quanto para o enquadramento jurídico:

  • Erro médico ocorre quando há falhas de conduta, seja por negligência (omissão de cuidados necessários), imprudência (ação precipitada) ou imperícia (falta de habilidade ou conhecimento técnico). Nesse caso, o profissional descumpre o dever objetivo de cuidado, causando danos evitáveis ao paciente.

  • Iatrogenia, por outro lado, é o resultado de complicações intrínsecas ao tratamento, que ocorrem mesmo quando o médico age com diligência e segue todos os protocolos técnicos.

A caracterização da iatrogenia depende de uma análise criteriosa dos seguintes elementos:

  1. Dano previsível e inevitável: ocorrência de um dano que poderia ser previsto, mas não evitado, mesmo com todos os cuidados.

  2. Adequação técnica: confirmação de que o profissional agiu nos padrões estabelecidos pela ciência médica.

  3. Ausência de culpa: inexistência de negligência, imprudência ou imperícia na atuação médica.

Por exemplo, em um caso de perfuração intestinal durante uma colonoscopia, a responsabilidade médica só será atribuída se houver falha técnica, como má execução do procedimento ou uso inadequado de instrumentos.

O Papel do Consentimento Informado


O consentimento informado é uma ferramenta essencial para prevenir ações judiciais relacionadas à iatrogenia. O médico deve garantir que o paciente compreenda claramente os riscos, benefícios e alternativas do tratamento proposto. Essa comunicação deve ser feita de forma acessível, documentada no prontuário e assinada pelo paciente.

A ausência de consentimento informado pode gerar a impressão de negligência, mesmo em casos de danos inevitáveis. Por isso, além de uma medida ética, o consentimento informado é uma salvaguarda jurídica indispensável.

Exemplo prático: antes de um procedimento cirúrgico, informar ao paciente sobre o risco de hemorragia ou infecção, ainda que mínimos, demonstra transparência e reforça a confiança na relação médico-paciente.

Iatrogenia

Limites Jurídicos da Responsabilidade Médica

A responsabilidade médica, especialmente em casos de iatrogenia, exige análise detalhada, considerando a distinção entre danos inevitáveis e falhas de conduta profissional.

A jurisprudência brasileira reforça a importância dessa diferenciação, com decisões que estabelecem parâmetros claros para a exclusão ou imposição de responsabilidade.

Um exemplo significativo é o julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível n.º 1000984-84.2015.8.26.0278), envolvendo um paciente que sofreu lesões durante uma colonoscopia. O tribunal concluiu que a perfuração intestinal era uma complicação reconhecida e tratada adequadamente, excluindo qualquer culpa do médico.

Por outro lado, quando há indícios de erro médico, os tribunais têm sido rigorosos em responsabilizar os profissionais. No julgamento da Apelação Cível n.º 1006226-22.2019.8.26.0007, o paciente foi liberado sem exames adequados após a ingestão de alimento contaminado, resultando em óbito. A conduta negligente dos médicos foi determinante para a condenação, pois o tribunal atribuiu responsabilidade civil aos profissionais e à instituição, considerando que houve omissão na avaliação e no tratamento da paciente.

Tais precedentes demonstram que a ausência de culpa constitui o elemento central para a exclusão da responsabilidade civil nos casos de iatrogenia. Ou seja, quando demonstrado que o profissional agiu com diligência, observando os protocolos médicos e os deveres inerentes à sua atuação, eventuais complicações decorrentes do próprio risco do procedimento não geram, por si só, o dever de indenizar.

Por outro lado, quando restam evidenciadas omissões, imperícia, imprudência ou negligência — como no caso da ausência de exames essenciais ou da alta precoce e injustificada —, impõe-se a responsabilização do médico e, se for o caso, da instituição de saúde. Assim, a distinção entre complicações inevitáveis e condutas reprováveis é imprescindível para a adequada aplicação dos institutos da responsabilidade civil no campo da medicina.

Estratégias para Atuação Segura

Os médicos podem adotar diversas estratégias para atuar com segurança e minimizar os riscos de ações judiciais:

  1. Protocolo de comunicação: informar o paciente de maneira clara e documentada sobre todos os aspectos do tratamento e possíveis complicações.

  2. Prontuário completo e detalhado: registrar cuidadosamente cada etapa do atendimento, desde o diagnóstico até o tratamento e acompanhamento, com atenção especial às decisões clínicas.

  3. Gerenciamento de complicações: em caso de intercorrências, agir de forma rápida e registrar todas as medidas adotadas para mitigar o dano.

  4. Supervisão de equipe: garantir que a equipe médica esteja devidamente treinada e alinhada com os padrões institucionais.

  5. Capacitação contínua: manter-se atualizado sobre as melhores práticas médicas e os avanços científicos é essencial para evitar erros e reduzir complicações.

Conclusão

A iatrogenia é um desafio inerente à prática médica, refletindo os riscos inevitáveis que acompanham tratamentos e procedimentos clínicos. Diferenciar iatrogenia de erro médico é crucial tanto para proteger os profissionais quanto para assegurar justiça no sistema de saúde.

A adoção de estratégias preventivas, como o consentimento informado e a documentação adequada, além de um compromisso contínuo com a capacitação técnica, não somente reduz os riscos de responsabilização, mas também fortalece a relação de confiança com os pacientes.

Em um ambiente médico cada vez mais regulado e judicializado, compreender os limites da responsabilidade médica é indispensável para garantir uma atuação ética, segura e legalmente protegida. Dessa forma, a medicina pode continuar a cumprir seu papel primordial: promover, com responsabilidade e humanidade, a saúde e o bem-estar daqueles que dela dependem.

Autor (a)

Advogada no escritório Battaglia & Pedrosa Advogados. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduanda em Direito Médico e Bioética pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Atuação profissional em Direito Médico e da Saúde.

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