Contrato de Namoro
A ideia de formalizar o namoro conquista cada vez mais adeptos no Brasil, como indicam os dados apresentados pelo Conselho Notarial do Brasil (CNB) que registrou número recorde de contratos de namoro no ano de 2023, com 126 registros, o que representou o aumento de 35% em relação ao ano de 2022.[1]
Em que pese seja um assunto cada vez mais recorrente na mídia, considerando a quantidade de artistas e pessoas públicas que se valem deste instrumento para gerir suas relações, ainda persistem dúvidas para a maioria da população acerca da sua validade ante eventual alegação de união estável e eficácia quanto à proteção patrimonial de ambas as partes.
Diante disso, este artigo visa analisar a legislação pertinente ao tema, bem como o entendimento jurisprudencial acerca da validade desses contratos e do seu real impacto no afastamento da declaração de união estável entre as partes.
Diferença entre União Estável e Namoro Qualificado
Reconhecida como entidade familiar pelo art. 226, §3º da Constituição e pelo art. 1.723 do Código Civil, a união estável se caracteriza pela relação afetiva entre 2 (duas) pessoas que convivem de forma pública, contínua e duradoura, com a intenção de constituir uma família.
Como se sabe, além dos seus requisitos serem bastante subjetivos, a união estável, ao contrário do instituto do casamento, dispensa a formalização do ato por meio de registro em cartório para sua caracterização, podendo ser reconhecida posteriormente, isto é, quando o casal pleiteia a dissolução da união e a partilha dos bens em Juízo. Ademais, não há um prazo estabelecido por lei ou entendimento jurisprudencial para que uma relação afetiva seja considerada união estável e, tampouco, é necessária a coabitação das partes, sendo certo que, na ausência de disposição diversa em termo registrado em cartório, aplica-se o regime da comunhão parcial de bens.
Ocorre que a dinâmica das relações afetivas tem se transformado muito ao longo dos anos, o que nem sempre é acompanhado pela legislação, razão pela qual são cada vez mais sutis as diferenças entre os casais que mantém apenas um namoro e aqueles que pretendem constituir uma família.
Nesse sentido, o jurista Zeno Veloso alertava sobre a dificuldade de se distinguir a união estável do que se convencionou chamar na doutrina e jurisprudência de “namoro qualificado”:
Nem sempre é fácil distinguir essa situação – a união estável – de outra, o namoro, que também se apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal, especialmente se entre pessoas adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos anteriores (alguns bem-sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima – inclusive, sexual –, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas, comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio social ou profissional que entre os dois há uma afetividade, um relacionamento amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a situação pode se assemelhar – e muito – a uma união estável. Parece, mas não é! Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado, consolidado, e por isso tem sido chamado de ‘namoro qualificado’, os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem – ou ainda não querem – constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam de affectio maritalis. Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro – mesmo do tal namoro qualificado –, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo. [2]
Assim, no denominado namoro qualificado, embora as partes mantenham relação amorosa duradoura, pública e, muitas vezes, com coabitação, não há intenção clara de constituir uma família naquele momento – ainda que este seja um plano futuro – o que afasta o reconhecimento da união estável.
Com efeito, essas diferenças ganham relevância ao se verificar que as suas repercussões patrimoniais também serão diversas, pois, enquanto no namoro qualificado não há que se falar em partilha, o reconhecimento de união estável pode ensejar, além da divisão dos bens entre o casal, a obrigação de pagar alimentos para uma das partes.
Logo, vários casais, no intuito de evitar futuras disputas patrimoniais, se utilizam do contrato de namoro como forma de tentar afastar eventual reconhecimento de união estável, o que tem sido alvo de debate doutrinário e jurisprudencial.

O entendimento jurisprudencial sobre o Contrato de Namoro
Incialmente, cumpre esclarecer que, apesar de o contrato de namoro não ter previsão específica na legislação, não há dúvidas de que, como qualquer outro negócio jurídico, seus requisitos de validade são os mesmos do art. 104 do Código Civil. Assim, é necessário que as partes sejam maiores e capazes, além do objeto do contrato ser lícito, possível e determinado, sendo certo que, como não possui forma prevista em lei, sua formalização pode ser dar através de registro em cartório ou instrumento particular.
Com relação ao entendimento dos Tribunais sobre o tema, vale dizer que a jurisprudência ainda é incipiente, porém os contratos de namoro têm sido admitidos como elemento de prova em Juízo quando as partes pretendem demonstrar a ausência de intenção de constituir união estável.
APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO – DIREITO DE FAMÍLIA – UNIÃO ESTÁVEL (…) CONTRATO DE NAMORO. CARACTERIZAÇÃO DE NAMORO QUALIFICADO NO SEGUNDO PERÍODO. VERIFICAÇÃO NA ESPÉCIE. VALIDADE DO INSTRUMENTO. PARTES MAIORES, CAPAZES, REPRESENTADAS POR ADVOGADOS E SEM PROVA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL DO PERÍODO DE JULHO DE 2015 E ENTRE JULHO DE 2016 A JUNHO DE 2018. AFASTADA. SITUAÇÃO FÁTICA QUE NÃO COMPROVA A CONVIVÊNCIA PACÍFICA, DURADOURA, COM OBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA NESSE SEGUNDO PERÍODO. AFFECTIO MARITALIS NÃO VERIFICADA. (…) 1. De acordo com a lei, doutrina e jurisprudência em direito de família, para que o contrato de namoro qualificado ou união estável seja válido, é necessário os agentes sejam capazes e o objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável, observando forma prescrita ou não defesa em lei (conforme dicção do art. 104 do Código Civil brasileiro). O documento poderá ser público ou privado. 2. No REsp nº 1.454.643/RJ, o STJ esclareceu que “O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado ‘namoro qualificado’ -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída”. (…) APELAÇÃO CÍVEL: CONHECIDA E PROVIDA EM PARTE.RECURSO ADESIVO: CONHECIDO EM PARTE E NÃO PROVIDO.[3]
Contudo, até o momento, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é de que a mera existência de contratos de namoro não é determinante para afastar o reconhecimento de união estável, pois, caso sejam identificados elementos fáticos de que as partes constituíram família, o instrumento contratual perderá sua eficácia.
Nessa linha, convém ressaltar a decisão monocrática proferida pela Ministra Nancy Andrighi no AREsp nº 2255807/GO:
(…) É importante salientar que o contrato de namoro pode servir como elemento de prova num processo judicial, mas não possui validade para blindar, esquivar ou libertar os envolvidos das consequências da realidade, do estado de fato construído pela união estável. Deveras, embora seja possível a celebração de tal contrato, não se afigura possível impedir a eventual caracterização de uma união estável, cuja configuração decorre de elementos fáticos, não podendo ser obstada por um negócio jurídico. O contrato de namoro é prática que não é capaz, por si só, de afastar as consequências da união estável, pois como dito, esta é um fato da vida, uma construção afetiva, que não pode ser ocultada ou neutralizada por um mero contrato, uma mera declaração de vontades. A realidade afetiva vivenciada pelo casal não pode ser negada ou exonerada, a história construída pelos envolvidos é que deve ser analisada caso a caso. Razão pela qualmesmo havendo um contrato que indique relação de namoro entre as partes (evento 57, doc. 4), naquele momento (2007), o reconhecimento de união estável é cabível, notadamente diante do lapso temporal entre a elaboração do contrato e o término do relacionamento (2018), cuja manifestação de vontade expressa no referido documento não mais condiz com a realidade fática.[4]
Isso porque há uma preocupação dos Tribunais em garantir que os contratos de namoro não sejam utilizados de má-fé, no intuito de deturpar a realidade e deliberadamente prejudicar um dos companheiros. Dito isso, ainda que esses contratos sejam considerados válidos e relevantes pela jurisprudência, os elementos fáticos sempre irão se sobrepor a qualquer declaração de vontade das partes quando se trata de reconhecimento de união estável.
Conclusão
O contrato de namoro é uma ferramenta relevante para aqueles que desejam manter a autonomia patrimonial durante um relacionamento afetivo, sem que este seja confundido com uma união estável. Para tanto, é recomendado que o documento seja claro quanto ao seu objeto, bem como que seja assinado por ambas as partes com assistência jurídica e, preferencialmente, registrado em cartório para conferir maior publicidade.
Não obstante, a sua eficácia depende da realidade fática do relacionamento pois, caso sejam identificados elementos suficientes de que a relação entre as partes evoluiu para um arranjo familiar, a mera existência do instrumento contratual não será capaz de afastar o reconhecimento da união estável em Juízo e a sua consequente repercussão patrimonial.
Diante disso, ainda que o contrato de namoro possa oferecer alguma segurança jurídica, é recomendado que as partes se atentem para o seu comportamento ao longo do relacionamento evitando situações que possam indicar a intenção de constituir família como, por exemplo, a abertura de conta conjunta, a inserção do parceiro como dependente em plano de saúde, a aquisição de bens em conjunto etc.
[1]Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/06/contratos-de-namoro-batem-recorde-no-brasil-para-evitar-reconhecimento-de-uniao-estavel.shtml. Acesso em 07.10.2024.
[2] VELOSO, Zeno. Direito Civil: temas. Belém: ANOREGPA, 2018, p. 313
[3]TJPR; Apelação n. 0002492-04.2019.8.16.0187; 11ª Câmara Cível; Rel. Des. Sigurd Roberto Bengtsson; j. em 30.11.2022 (grifo nosso)
[4]STJ; AREsp n. 2.255.807; Min. Nancy Andrighi, DJe em 16.03.2023 (grifo nosso)