Insegurança jurídica – a (in)admissibilidade da cláusula de sandbagging na legislação brasileira

Insegurança jurídica – a (in)admissibilidade da cláusula de sandbagging na legislação brasileira

Operações de M&A tradicionalmente utilizam modelos contratuais típicos de operações norte-americanas. Mas a falta de adequação destes modelos ao direito brasileiro pode tornar nulas diversas previsões contratuais, impactando na análise de risco e precificação da operação

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M&A EMPRESA

O estudo do direito comparado entre os mais diversos sistemas jurídicos vigentes no mundo é sem dúvida uma das áreas de pesquisa mais desafiadoras do direito.

Muito embora se possa tradicionalmente dividir os principais sistemas em dois grandes grupos – common law e civil law, a verdade é que cada país tem sua própria evolução jurídica, com princípios e conceitos que podem variar conforme sua história e desenvolvimento próprios.

Com o incremento do fenômeno da globalização e da rápida expansão da internet as diversas relações jurídicas, que antes eram formadas por players iminentemente domésticos, passaram a ser cada vez mais internacionais.

O problema da compatibilidade ou incompatibilidade entre as legislações dos variados países, que antes parecia essencialmente interessar ao direito marítimo ou aos contratos de importação e exportação de insumos e produtos tem se tornado cada vez mais presente em todas as demais áreas do direito.

E tal problema parece tomar contornos ainda mais complexos quando se trata da realização de operações de M&A, cujo regramento segue as bases estabelecidas pela legislação norte-americana e, portanto, pela common law.

É curioso observar que, mesmo em operações envolvendo apenas empresas nacionais, com frequência se encontram contratos de loi, spa, mou, etc, claramente “copiados” de operações internacionais, com termos e elementos tipicamente oriundos do direito anglo-saxão, sem que efetivamente se tenha a preocupação de “tropicalizar” tais documentos à nossa legislação.

É claro que poder-se-ia alegar que esta adequação não é necessária, posto que a autonomia da vontade privada e o princípio da pacta sunt servanda confeririam proteção e vigência a quaisquer cláusulas contratuais negociadas entre as partes, sobretudo em operações societárias, com players sofisticados e com paridade informacional e de armas.

Mas tais premissas nos parecem falaciosas.

Isto porque, um dos elementos distintivos mais básicos entre os sistemas da common law e da civil law reside justamente no fato de que no segundo existe prevalência sistêmica dos códigos e leis escritas que, muitas vezes, possuem natureza cogente e se sobrepõe a vontade das partes, não importa quão expressa e cristalina ela se apresente em um contrato.

Essa peculiaridade impacta, por exemplo, no tamanho médio dos contratos – maiores nos países de tradição inglesa e menores nos países de tradição romano-germânica, afinal, nestes últimos não é a rigor preciso prever muitas clausulas e condições, pois a maioria já decorre de lei.

Mas quando trazemos um contrato de M&A, tipicamente criado e desenvolvido sob o manto da common law, e tentamos encaixá-lo em nosso sistema jurídico, diversas falhas começam a surgir.

Tomemos como recorte e objeto deste trabalho a chamada cláusula de sandbagging que, conforme ensina Gabriel Saad Kik Buschinelli representa a hipótese na qual o comprador, após o fechamento do negócio, se vale de uma cláusula de declaração ou garantia (representations and warranties), para buscar indenização decorrente de uma violação da qual teve ciência antes do fechamento da operação.

Para compreender melhor a problemática, impende analisar qual a função das chamadas representations and warranties, que, conforme ensina Sergio Botrel tem por finalidade persuadir o vendedor a apresentar ao comprador a maior quantidade possível de informações quanto ao negócio, servindo como componente da precificação do negócio e de base para fixação de eventuais indenizações na hipótese de tais declarações e garantias se revelares imprecisas ou inverídicas.

As representations and warranties, portanto, longe de representarem mera formalidade contratual, representam verdadeiras premissas e pressupostos do negócio, com influência direta na existência, precificação e conclusão da operação. Por tal relevância, o impacto da cláusula de sandbagging, que se conecta justamente a uma violação das representations and warranties pode ser colossal para as partes.

Como forma de precificar ou ao menos controlar tal impacto, é comum que os contratos de M&A contenham em seu bojo ou a cláusula pro-sandbagging ou a cláusula anti-sandbagging, demonstrando qual foi a alocação de riscos adotada pelas partes, colocando maior ou menor peso nas representations and warranties.

Se as partes buscam dar maior validade às representations and warranties, em geral adotam o modelo pro-sanbagging, pois nesse caso o vendedor poderá reclamar por violações às representations and warranties, mesmo se já tivesse ciência de tal violação antes do fechamento do negócio.  Nesse modelo, se outorga às declarações do vendedor um maior peso, incentivando este a declarar somente o que de fato corresponder à realidade.

Por outro lado, se as partes buscam dar menor peso às representations and warranties, e consequentemente maior peso à due-diligence realizada pelo comprador, em geral adotam o modelo anti-sandbagging, impedindo o comprador de buscar indenização à posteriori por violações do comprador às representations and warranties, das quais teve ciência antes do fechamento da operação.

Esse modelo, como já afirmado acima, foi criado e desenvolvido sob a sombra da common law, na qual se outorga às partes mais liberdade contratual para definir tais alocações de risco, muito embora nem mesmo nos Estados Unidos exista uma posição uniforme sobre a interpretação e aplicação de tal cláusula. Com efeito, conforme ensina Ricardo Morais Tonin, em tese produzida na FGV e orientada pela professora Mariana Pargendler, no estado da California prevalece a regra anti-sandbagging, enquanto em Nova York e em Delaware prevalece a regra pro-sandbaggingg.

E se nem em seu berço a questão é pacífica, naturalmente não haveria de ser em terras bandeirantes.

Isto porque, a validade de tais cláusulas, em especial da pro-sandbagging deve passar pela análise de regras de natureza cogente previstas no Código Civil, em especial a boa-fé objetiva, prevista no Art. 422, e que expressamente determina que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução os princípios de probidade e boa-fé”

O cotejo da necessária observância da boa-fé objetiva com a postura do comprador que “oculta” a ciência de uma violação às representations and warranties para em seguida buscar uma indenização parece de fato apontar a priori para a invalidade da cláusula pró-sandbagging entre nós. Também poderia ser invocado o princípio amplamente aceito por nossa jurisprudência do non venire contra factum proprium, ou a vedação dos comportamentos contraditórios, pois se o comprador assinou o contrato mesmo sabendo da violação às representations and warranties é porque naturalmente renunciou ao direito de reclamá-las.

Por outro lado, não se olvida que a chamada Lei da Liberdade Econômica expressamente passou a determinar (art. 421-A do Código Civil) que os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, devendo se garantir às partes o direito de definir os parâmetros de interpretação das cláusulas contratuais, pressupostos de revisão ou de resolução, somente se procedendo revisão contratual em casos excepcionais.

 Tal modificação legislativa que, obviamente traz novo fôlego ao vergastado princípio da pacta sunt servanda certamente poderá ser utilizada como argumento para alçar validade à cláusula pro-sandbagging.

Importante anotar que grande parte dos conflitos envolvendo operações de M&A no Brasil acaba sendo resolvido através de arbitragem, que tem como um de seus pilares o sigilo de tais discussões. Por conta de tal sigilo e embora algumas câmaras engatinhem em projetos de divulgação de ementas de julgamento, não há jurisprudência formada no Brasil sobre o tema, que permita às partes conhecer previamente qual será o resultado de uma discussão de sandbagging entre nós.

Face a tal insegurança, como bem adverte Daniel Kalasky, é preciso que as partes estejam cientes de que a validade de uma provisão pro-sandbagging entre nós vai depender da posição adotada pelo julgador, se tendente a privilegiar o princípio da boa-fé objetiva, hipótese em que deve tal cláusula como regra ser invalidada, ou se tendente a privilegiar a autonomia da vontade privada reforçada pela Lei de Liberdade Econômica, fazendo valer as previsões contratuais.

Por fim, outro ponto tormentoso é buscar qual seria a possível conclusão de um tribunal brasileiro na hipótese de omissão das partes quanto à cláusula de sandbagging.

Neste caso, nos parece que as portas para aplicação do artigo 422 estariam abertas de forma mais evidente, afastando a possibilidade do comprador pleitear quaisquer direitos sobre falhas nas representations and warranties das quais já tivesse ciência antes do closing. Isto porque, ocultar a informação do vendedor, além de representar em algum grau má-fé do comprador, também parece não se coadunar com as regras existentes em nosso sistema para a reparação de vícios, pois, como bem anota Gabriel Saad Kik Buschinelli é vigente o princípio de que o comprador não se beneficia de proteção em relação a falhas que conhecia ou que, sendo evidentes, deveria conhecer (art.441 do Código Civil).

 Portanto, é preciso que as partes, ao negociarem sobre o manto da legislação brasileira, busquem adequar as previsões contratuais à nossa legislação (e às nossas inseguranças jurídicas), sob pena de avaliar de modo incorreto os riscos da operação e naturalmente sua precificação.

Paulo André M. Pedrosa

Autor da coluna “Direito & Negócios”, advogado do Battaglia & Pedrosa Advogados. Graduado em Direito pelo Mackenzie. Pós-graduado em Processo Civil pela PUC-SP. LL.M em Direito Societário pelo INSPER. Mestrando em Direito dos Negócios pela FGV-SP.

pauloandre@bpadvogados.com.br

 

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